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ARTIGO: O Comunitarismo e a injustiça legal

Publicado em 27/07/2012 15:00
Autor(a): Autor não informado
Defensor Público Daniel Gezoni - Foto: Lucineide Farias
Depois de passar nove meses sob a proteção aquecida do ventre materno, o ser humano ganha a dádiva da luz. Neste momento as engrenagens do acaso se movem e o milagre do nascimento pode ocorrer em um amplo, limpo e moderno hospital ou em um quarto escuro de assepsia precária. Ou no mato, tendo como teto as estrelas ou um sol escaldante.

Se esta alma encarnou em um corpo feminino, em uma família muçulmana ortodoxa, ela terá de cobrir o corpo dos pés a cabeça. Na adolescência terá o órgão genital mutilado sem anestesia por sua mãe e tias, num ritual de ingresso na idade adulta. Para esta alma, o prazer sexual será proibido em razão de uma interpretação duvidosa do Corão. A ela, pelo mesmo motivo, não será permitido estudar ou trabalhar e terá que encontrar realização nos serviços domésticos. Sua vontade é irrelevante. A vontade do marido será suprema e a lei estabelecerá punições severas para qualquer desvio.

Por outro lado, se o acaso for generoso, o simples fato de ter nascido em outra parte do globo garantirá a esta mulher uma noção ocidental de vida, integridade física e liberdade. Poderá casar-se ou não, divorciar-se ou não, estudar ou não e terá direitos iguais aos dos homens... Enfim, poderá buscar a felicidade como bem entender.

É justo e legal um tratamento tão distinto aos direitos fundamentais com base em costumes e religião? É justo que particularidades religiosas e culturais imponham restrições a liberdade e a integridade física desta mulher?

Aliás, você que está lendo estas linhas já se perguntou por que devemos respeitar a vida, a integridade física e a liberdade de nossos semelhantes? Porque estes direitos seriam obrigatórios? Qual seria o seu fundamento?

O entendimento destes dilemas requer como premissa básica a noção de positivismo jurídico, jusnaturalismo, universalismo e relativismo. Isso porque a resposta a estas perguntas depende da escola de pensamento jurídico escolhida pelo interprete.

Se entendermos que os direitos fundamentais devem ser respeitados porque a lei assim determina, a postura adotada será a positivista. Ao contrário, se acreditarmos que estes direitos são tão fundamentais e inerentes a condição humana ao ponto de estarem acima de qualquer lei e imporem o seu respeito independentemente dela, teremos como verdadeiros os preceitos do jusnaturalismo. Neste caso, os direitos humanos são obrigatórios por seu conteúdo ético e moral.

A posição puramente positivista, o nazismo demonstrou ser temerária. Principalmente na Alemanha nazista, notou-se que a norma positiva pode ser um veículo capaz de levar qualquer passageiro. E em alguns casos o passageiro pode ser sombrio e muito cruel. O que se quer dizer é que a lei pode ter um conteúdo injusto e arbitrário. O que fazer quando a lei viola direitos fundamentais? Se o estado nazista alemão tinha amparo legal a quem poderiam recorrer as minorias atacadas? O judeu recolhido a um campo de concentração nazista poderia recorrer ao poder judiciário alemão? O que fazer quando a lei e o estado são os algozes?

A experiência alemã demonstrou ao mundo que uma absurda injustiça pode vir de uma lei e o estado pode ser o principal algoz de seu povo. Alguns regimes africanos atuais não permitem que esqueçamos estas lições. Por isso a proteção dos direitos humanos passa atualmente por uma fase de internacionalização. O sucesso do jusnaturalismo contra o positivismo jurídico vem da ideia que a lei pode ser uma ferramenta de opressão. Se os direitos humanos são superiores as constituições e leis, porque são um acervo de direitos inerentes ao homem, eles são obrigatórios e devem ser observados independentemente de lei. A lei que os contraria é inválida. Se o estado não os observa, estará sujeitos a uma jurisdição internacional.

Todavia, a escola jusnaturalista surge muito antes disso. Nos períodos mais lúgubres de nossa história, a sociedade era governada pela vontade de um Rei absolutista. Seus súditos, os governados, não possuíam instrumentos capazes de protegê-los dos caprichos do monarca. O soberano era o representante de Deus na terra e, em virtude disso seus poderes eram ilimitados. Com apoio nessa ideia, vidas de opositores eram eliminadas, propriedades eram confiscadas e a tortura livremente aplicada para a obtenção de confissões.

Foi neste momento amargo que surgiu o jusnaturalismo como fundamento dos direitos humanos. Segundo as teorias jusnaturalistas os direitos humanos integram o direito natural. Um acervo de direitos que qualquer ser humano teria de forma incontestável. Foi com base na ideia de que certos direitos são superiores ao sistema legal, que a sociedade encontrou uma forma, um instrumento para se opor ao Rei e ao regime anterior que não previa direitos fundamentais. Estes direitos são chamados pela doutrina de Direitos Fundamentais de primeira geração.

Com o jusnaturalismo, a sociedade passou ter direitos em face do soberano. O tempo e a evolução cultural da humanidade convenceram os detentores do poder a reconhecer estes direitos. A lei, em razão disso, passou a prevê-los. Neste instante o jusnaturalismo sofre um revés e o positivismo jurídico passa a ser o principal fundamento dos direitos humanos. Ora, é muito mais fácil, simples e seguro basear-se na lei para afirmar o direito, que arengar sobre jusnaturalismo. Percebam que neste momento o positivismo supera o jusnaturalismo como fundamento dos direitos humanos. Apenas com a segunda grande guerra é que, como uma fênix, o jusnaturalismo regressa.

A Segunda Guerra Mundial destrói alguns alicerces do positivismo. Depois dela, fica difícil negar que adotar uma posição puramente positivista pode, de certa forma, legitimar direitos injustos.  Como foi o caso do Regime Nacional Socialista Alemão na Constituição de Weimar. Então, há no segundo pós-guerra um resgate do jusnaturalismo.

Logo após a Segunda Guerra Mundial, filósofo do direito Gustav Radbruch, escreveu um texto dirigido aos estudantes de Heidelberg representativo desta mudança de concepção. Este jurista alemão era um positivista clássico, mas com seu "Cinco minutos de filosofia do Direito" demonstra sua adesão ao jusnaturalismo e simboliza o seu renascimento.

As atrocidades cometidas por Hitler denunciaram ao mundo a necessidade premente de internacionalização dos direitos humanos. Nesse sentido, idealizam-se Cortes Internacionais para julgamento de crimes de guerra e ofensas a direitos humanos. Para que não ocorram outros julgamentos em tribunais de exceção, como o de Nuremberg, onde os vencidos foram julgados pelos vencedores.  

Destarte, como consequencia, essas instancias internacionais de tutela dos direitos humanos reanimam a discussão sobre o universalismo e relativismo (comunitarismo) destes direitos.

Seriam os direitos humanos realmente universais, de modo a constituir um rol intangível e incontestável desde o Rio de Janeiro até Addis Abeba ou Teerã? Ou será que essa questão revela uma tentativa de o ocidente impor sua doutrina e seus valores culturais ao oriente que não comunga deles?

A pergunta pode ser reformulada em outro sentido: Seriam os direitos humanos um rol dependente do contexto cultural e da lei do estado no qual a pessoa se insere? Ou será essa uma desculpa para regimes totalitários esmagarem direitos de minorias? Seria o comunitarismo um argumento suficiente para impor restrições à liberdade e a integridade física de mulheres no oriente?

Ante a estas singelas asserções, podemos concluir que o jusnaturalismo se aproxima do universalismo e o relativismo do positivismo jurídico. O universalismo sugere que assim como o sol brilha para todos, os direitos humanos também devem irradiar sua proteção por toda parte, ignorando fronteiras e divergências políticas ou religiosas. O relativismo detrai deste entendimento, para os relativistas o direito deve ser reflexo da cultura de um povo.

Talvez esse seja o grande dilema de nossa era. E a filosofia do direito apresenta argumentos fortes e respeitáveis para ambos os lados.   

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