Neste mês, a mais alta Corte da justiça brasileira julgou a constitucionalidade do sistema de quotas para ingresso em universidades públicas, decidindo se este método de beneficiamento conferido com base na cor da pele respeita os princípios e normas constitucionais, sobretudo o princípio da igualdade.
Trata-se de um tema complexo e que estimula discussões acirradas. E não deveria ser diferente, pois a questão das quotas raciais traz consigo grandes dilemas éticos e de justiça. Daí a importância do tema. Diante disso, devemos refletir sobre alguns pontos, que são os vórtices do problema. Isso permitirá uma compreensão exata dos interesses em litígio e a consequente descoberta da solução adequada.
Muitos especialistas em ciências humanas defendem a tese de que o ingrediente principal que compõe o prato amargo de exclusão do pobre do cenário acadêmico é a debilidade do Ensino Fundamental e Médio público. Para não fugir a proposta deste artigo, de ser uma leitura rápida, sintetizarei este entendimento em um silogismo: a) Premissa 1: o ensino público Fundamental e Médio é débil, dificultando o acesso ao Curso Superior; b) Premissa 2: são os pobres que cursam o Ensino Fundamental e Médio público; c) Conclusão: logo, são os pobres que possuem maior dificuldade de ingressar no Ensino Superior.
Assim, estudos apontam que o problema da democratização da educação pública Superior no Brasil é social e não racial. Se o problema é social, não será a reserva de vagas por motivo racial a solução, pois nem todo negro é pobre, ou todo branco membro da elite brasileira. Se a pobreza é multicolorida, porque favorecer determinada cor?
Os argumentos contrários ao sistema de quotas apresentados pelo requerente (Partido Democratas), durante o julgamento da ADPF 186, revelam três aspectos fundamentais:
Primeiro, o critério da cor da pele é frágil, inconsistente e impróprio para conferir direitos num país tão miscigenado como o Brasil. Isso gera dificuldades e contradições na definição dos beneficiários, como no caso noticiado pela mídia em que gêmeos univitelinos tiveram tratamento distinto, um sendo selecionado e o outro não.
Segundo, a problemática na democratização do direito à educação no Brasil é social e não racial. Estudos comprovam que, mesmo depois de 10 anos da aplicação da política de quotas raciais, o aumento do número de pobres nas universidades públicas ficou estagnado. Portanto, as quotas beneficiam negros e pardos de classes abastadas, que de uma forma ou de outra entrariam na universidade.
Terceiro, a justificativa inicial para a política de quotas, de corrigir os erros do passado, não se aplicaria ao Brasil diante da alta miscigenação racial, pois não é possível correlacionar cor de pele com ancestralidade genômica. Significa dizer: não se pode afirmar que determinado negro brasileiro descende de escravos ou de brancos europeus. A ciência já provou que entre os 25 mil genes humanos, apenas 10 definem a cor da pele.
A requerente recorda que, historicamente, o sistema de quotas raciais surgiu em países onde após vários séculos de escravidão o racismo ainda perseverou, se manifestando de forma institucionalizada na ideologia dos “iguais”, mas “separados”. Países onde as pessoas eram separadas devido à cor da pele, desde o hospital em que nasciam até o cemitério onde eram enterradas. Assim, escolas, universidades, refeitórios, dormitórios, ônibus, restaurantes e banheiros eram distintos.
Nesses países, as ações afirmativas foram idealizadas como uma forma de reparar as cicatrizes destas atrocidades, conferindo benefícios aos descendentes das vítimas. Nos EUA, o critério não é a cor da pele, mas da “gota de sangue”; basta que o beneficiado descenda de escravos.
Ocorre que essa concepção de justiça compensatória não fundamenta corretamente o sistema de quotas, pois ela compensa alguém que não sofreu violação e aquele que arca com o ônus não foi o causador do dano.
Seria justo uma geração pagar os pecados de outra? Seria justo os vivos pagarem o débito dos mortos?
Ademais, o sistema de quotas tem um viés injusto e cruel. Injusto porque traça uma linha divisória dentro de grupos vulneráveis com semelhanças marcantes (ex. estudantes carentes da periferia serão separados em beneficiados negros e não beneficiados brancos). Cruel porque pode levar a benefícios imerecidos (ex. negro rico conquistando a vaga em detrimento de um branco com melhor nota). É, ainda, imprudente, porque pode levar ao rancor dentro do grupo. Finalmente, não se pode esquecer que dentro do grupo racial beneficiado haverá competição, e a luta será vencida por quem teve recursos financeiros para cursar um ensino de qualidade. Desse modo, uma política de exclusivo recorte racial beneficiará apenas as classes mais elevadas.
O partido Democratas, a meu sentir, expôs o pensamento popular de que o ideal para o Brasil seria adotar um critério social, aumentando o número de estudantes carentes de todas as raças, e por conseguinte, como efeito colateral desta medida, um aumento do número de negros.
Apesar de estas ideias serem convincentes, elas levam a uma conclusão precipitada. Primeiro é preciso compreender a intenção das quotas raciais, o que se busca com elas.
Desejam estas facilitar o acesso de negros e pardos pobres aos bancos escolares de universidades públicas? Se este for o objetivo, as quotas raciais fracassaram terrivelmente, pois, elas não geram um incremento do número de pobres nas universidades públicas.
Entretanto, se o objetivo for aumentar o número de negros e pardos independentemente de classe social, principalmente nos cursos mais concorridos, o sistema vem atingindo o seu escopo.
Para o Supremo, não há nada de errado e nem ofende a igualdade, um estudante negro ter preferência a uma vaga na universidade em detrimento de um estudante branco com notas melhores no teste de admissão. E pensa assim, mesmo ambos sendo da mesma classe social. Portanto, na visão do STF, as quotas raciais não ofendem a isonomia; mesmo que elas, na prática, criem privilégios aos ricos, em razão da cor da pele.
Devo confessar que antes do julgamento acreditava ser o sistema de quotas raciais uma importação indevida de solução adotada por país com realidade distinta da brasileira. Seria uma solução imprópria ao problema do racismo no Brasil em razão de nossas peculiaridades, tais como a alta miscigenação de nosso povo, a péssima distribuição de renda e a terrível qualidade do ensino público.
Ocorre que estas particularidades não afastam a realidade do Brasil está muito longe de uma democracia racial. Dentro do mercado de trabalho, as carreiras mais lucrativas, gratificantes e importantes são, em sua maioria, ocupadas por brancos. Nas universidades, os cursos mais concorridos são frequentados em sua maioria por brancos. Indicadores sociais apontam que no Brasil, os negros se destacam apenas nos setores do esporte e cultura. A requerida (UNB-CEPE-CESPE) afirma que o fato de não existirem personalidades negras emblemáticas nos setores acadêmicos e em profissões valorizadas, acaba minando a autoestima do negro e o conduzindo-o a trabalhos braçais e de pouco desafio intelectual.
A requerida defende a política de quotas com recorte racial fundando o seu entender na ideia de que a sociedade brasileira é racista. Para a requerida, a imagem de uma sociedade que não se importa com cores normalmente é defendida por pessoas de pele mais clara, e a igualdade sempre é vista da perspectiva do dominante. Mesmo que se ignorem os mais de 300 anos de escravidão, a sociedade pós-lei áurea impossibilitou a ascensão do negro ao negar-lhe terra e educação, as únicas formas de ascensão social e promoção da dignidade humana da época. Ronald Dworkin (2005) enfatiza que “a ação afirmativa tenta colocar mais negros nas salas de aula junto com brancos, não porque seja desejável que uma universidade reflita a constituição racial da comunidade como um todo, mas porque a associação profissional entre negros e brancos diminuirá entre os brancos a atitude de considerar os negros como raça e não como indivíduos e, assim, a atitude dos negros de pensar em si próprios da mesma maneira” [1].
Sim, mas o que um estudante branco carente de recursos financeiros que batalhou muito para ingressar em uma universidade pública, mas viu seu sonho frustrado por um negro rico com notas menores no teste de admissão, tem a ver com isso? Não teria ele o direito de ser avaliado segundo seus méritos? Não teria ele o direito de ser avaliado como indivíduo, não como membro de um grupo social? Não teria ele o direito, tanto quanto qualquer negro, de não ser sacrificado ou ter uma oportunidade excluída apenas por causa de sua raça?
Dworkin (2005) sustenta que estas perguntas conduzem o incauto leitor a caminhos equivocados. Para ele, a reflexão demonstra que o único princípio genuíno que descrevem é que ninguém deve sofrer com o preconceito ou desprezo dos outros. Em verdade, quem sofre verdadeiro preconceito e desprezo, o branco ou o negro?
Sendo a justiça racial uma necessidade para o progresso da humanidade, não poderá existir direito individual à educação capaz de impedir a viabilização de medidas que visem assegurar tal justiça.
Dworkin (2005) assevera que há diferenças entre o estabelecimento de quotas raciais e outros métodos que fazem da raça apenas mais um elemento na definição do grupo beneficiado pela política afirmativa, mas tais diferenças seriam apenas administrativas e simbólicas, pois em ambos os casos o objetivo é o favorecimento de minorias.
Uma coisa deve ficar clara, seja a minoria beneficiada por questão de raça ou por motivo de classe social, ou ainda que o critério seja misto, sempre haverá alguém prejudicado. Em qualquer caso, um candidato perderá a vaga em face do tratamento diferenciado dado a outro. E Dworkin (2005) nos faz perceber que enquanto as carreiras mais interessantes e importantes forem ocupadas em sua maioria por brancos, sempre haverá uma divisão racial e somente o aumento do número de negros atuando nessas profissões permitirá a redução do sentimento de frustração, injustiça e constrangimento racial por eles sofrido.
Enfim, o emprego do sistema de quotas não significa, para utilizar a expressão de Bob Marley, que a cor da pele vale mais que o brilho dos olhos, ou seja, a cor da pele não será mais importante que o empenho, a luta e o esforço para realizar um sonho. Afinal, a maioria das vagas ainda será de ampla concorrência. Evidente que o contrário seria inconstitucional por violação do princípio da igualdade e da proporcionalidade.
De toda a sorte, o debate de ideias, sobretudo aquele ligado a direitos humanos, deve ser estimulado. Somente a liberdade de pensamento e de expressão permite a descoberta e a disseminação da verdade política. O ódio e o preconceito jamais podem desencorajar o pensamento, a esperança e a imaginação. Por isso, o ministro Holmes da Suprema Corte Americana resumiu bem a questão ao dizer: “liberdade para as ideias que odiamos”. Sempre deve ser assim, mesmo quando acreditamos estarem elas carregadas de injustiça. Afinal, a justiça pode ser uma questão de perspectiva. A ideia deve ser livre, porque antes do final do caminho, você pode acabar concordando com ela. O julgamento da ADPF 186 me convenceu da justiça no sistema de quotas raciais. E você?