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Por mais feministas na Defensoria Pública do Tocantins

Publicado em 01/07/2020 18:31
Autor(a): Autor não informado
Franciana di Fátima Cardoso - Foto: Loise Maria/Comunicação DPE-TO


Por Franciana di Fátima Cardoso*


No último dia 22 de junho de 2020, o Conselho Superior da Defensoria Pública (CSDP) viveu um momento histórico, passível de inscrição nos anais da Instituição, que teve no protagonismo de uma conselheira eleita, na condição de suplente, bem como na condução de voto de outra mulher enquanto relatora, a demonstração do quanto precisamos ser mais, sermos mais fortes e unidas.

Trata-se do coroamento de lutas feministas pelo reconhecimento de novos, ou nem tão novos, direitos: o respeito à maternagem em âmbito institucional enquanto política pública fundamental  em favor da mulher trabalhadora e à primeira infância.

O reconhecimento de direitos sociais no Brasil está consagrado na Constituição Federal de 1988, contudo, sua concreção e efetividade não seguem a mesma sorte. Por isso, a consolidação através de Resolução, de regulamentação do exercício da maternagem no âmbito da Defensoria Pública, pode afastar, como às vezes ocorre, o preconceito, o tratamento desrespeitoso ou até assédio moral. Não raro, nas conversas informais, quando da notícia de uma grávida, escutamos comentários misóginos como: "vamos ter que distribuir contraceptivos para essas mulheres'! ou pior; 'vamos ter que laquear todas'! ou ainda, "é melhor que não tenhamos tantas servidoras aprovadas em concurso ou contratadas. Elas engravidam!'

Sabemos que esse processo de luta é doloroso, mas necessário. Afinal, direitos humanos devem ser entendidos como construção histórica (HUNT, 2009; FLORES, 2009) e também por isso, exige uma reflexão profunda sobre nossas crenças, valores e posturas. Afinal, somos constituídos pelo patriarcado[1] e atravessados pelo machismo.

Há luz no fim do túnel! Testemunhar o Conselho Superior da Defensoria Pública dando lição sobre direitos humanos contra-hegemônicos, construídos através do reconhecimento das lutas das subaternizadas e minoritárias no exercício do poder é sem dúvida uma esperança. Parece haver o reconhecimento de que "Os direitos humanos são a única gramática e linguagem de oposição disponível para confrontar as 'patologias do poder'" (SANTOS: 2014, p. 27).

Sobretudo no modelo de democracia que estamos vivendo, em notório momento de recuo e retrocesso, em um Estado absolutamente heteronormativo, fundado em bases patriarcais e neocolonialistas, submisso, por completo a um sistema socioeconômico e político neoliberal, em que falar sobre direitos e garantias sociais, incluindo a maternagem e a direitos da primeira infância, à luz do sistema produtivo hegemônico[2], é quase uma heresia.

Talvez, por isso, o Conselho Superior da Defensoria Pública, em ato de consciência do papel contra-hegemônico da Instituição possa construir sinalizadores para uma política pública estatal que seja capaz de reconhecer o papel da mulher na sociedade, sua importância e suas lutas, não apenas no plano da formalidade, mas em ato concreto, enfim, em realização de direito humano.

Hoje não temos paridade de gênero na composição do Conselho Superior da Defensoria Pública. Enfim, há a prevalência da maioria qualificada de homens (6/2), o que nos dá um nível baixíssimo de materialização da igualdade entre homens e mulheres e demonstra que, em alguma medida, ainda nos mantemos apegados à mesma estrutura conservadora e hegemônica de divisão sexual do poder em âmbito institucional, mesmo estando caminhando nas bases democráticas da eleição pelo voto direto.

Contudo, essa é outra questão! Mas não poderia deixar de lembrá-la. Afinal, quando falamos em democracia nosso senso comum já nos conecta imediatamente ao exercício de votar e ser votado, sendo que neste ano teremos, até decisão em contrário, eleições municipais. Quantas mulheres teremos eleitas para os cargos de prefeita e vereadora, considerando que a maioria do eleitorado tocantinense é composto por mulheres? Esse registro nos convida, sem dúvida alguma, a refletir com Alda Facio (2007, p. 86) citada por Escrivão Filho e Sousa Júnior:

Las feministas hemos concluido que tanto el derecho en sentido estricto como el derecho en sentido amplio, son fenómenos que excluyen las necesidades de las mujeres tanto de su práctica como de su teoría. Esto es importante entenderlo porque generalmente se cree que si no hay discriminación explícita en las leyes y los códigos de un determinado país, no hay discriminacíon legal e, por ende, las estrategias para eliminar la discriminación real son inefectivas porque parten de diagnósticos equivocados (2019, p. 105)

Parece claro que o julgamento, que se consolidará em Resolução para regulamentar o exercício da maternagem enquanto direito das mulheres trabalhadoras da Defensoria Pública do Tocantins e da primeira infância aponta, enfim, para a construção trazida por Escrivão Filho e Sousa Júnior de que

"o pensamento feminista emerge para a teoria do direito e dos direitos humanos como potencial epistêmico portador de uma habilidade crítica dos sistemas de conhecimento e das relações políticas e sociais. Não poderia ser diferente: se o referencial masculino projeta-se como sujeito universal do direito, o giro epistemológico feminista se apresenta desde um potencial transformador cujos resultados ultrapassam a própria fronteira dos direitos das mulheres, para incidir de modo estrutural na reformulação de toda teoria do direito e dos direitos humanos, através da atividade social e científica protagonizada por mulheres negras, latinas, camponesas, lésbicas e outras mais. (2019, p. 105/6)

Ao fim e ao cabo, que possamos vivenciar mais momentos históricos institucionais assim, para que, a cada dia, tenhamos cada vez mais, mulheres e homens engajados com o movimento feminista, que propõe um atuar revolucionário, para que os direitos humanos das mulheres não sejam enfim, como adverte Boaventura Sousa Santos, meros 'objetos de discurso de direitos humanos" (2014, p. 15).

Nosso reconhecimento à força combativa de mulheres e ao Conselho Superior da Defensoria Pública que acreditaram na proposta transformadora em favor de novos direitos.


*Franciana di Fátima Cardoso
é defensora pública e coordenadora do Núcleo Especializado em Defesa da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Estado do Tocantins.


Notas:

[1] "patriarcado representa a estrutura que organiza a sociedade, favorecendo uns e obrigando outros a se submeterem ao grande favorecido que ele é, sob pena de violência e morte" (TIBURI; 2018, p. 59). Trata-se portanto, de um sistema autoritário e violento que objetifica a mulher, impondo-lhe a condição de sujeição tanto no espaço privado quanto público porque parte do pressuposto de que os homens são superiores às mulheres e deveriam controlá-las (HOOLKS: 2018, p. 13).

[2] "O que é menos amplamente compreendido é que sociedades capitalistas também são, por definição, a origem da opressão de gênero. Longe de ser acidental, o sexismo está entranhado na sua própria estrutura" (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER; 2019,  p. 51


REFERÊNCIAS:

ARRUZZA; Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER; Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2019

ESCRIVÃO FILHO, Antônio. SOUSA JÚNIOR, José Geral de. Para um debate teórico-conceitual e político sobre direitos humanos. Belo Horizonte: editora D'Plácido; 2019

FACIO, Alda. Cuando el género suena cambios trae: una metodología para el análisis de género del fenómeno legal. 3. Ed. San José: ILANUD, 1999.

FLORES, Joaquín Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Trad. Carlos Roberto Diogo Garcia ett all. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009;

HOOLKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2018.

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. trad. Rosaura Eicheberg. São Paulo: Companhia das letras, 2009.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista de direitos humanos. 2ª edição. São Paulo: Cortez, 2014

TIBURI, Márcia. Feminismo em comum para todas, todes e todos.Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018



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