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ARTIGO: Os sertanejos invisíveis

Publicado em 10/05/2012 11:30
Autor(a): Autor não informado
Defensora pública Letícia Amorim - Foto: Lucineide Farias
A necessidade de escrever esta crônica nasceu da constatação de uma triste realidade, qual seja a de que ainda existem pessoas que não têm um nome, o que significa ser invisível para a própria sociedade e para o Estado. Foi uma manhã intensa de atendimentos na Defensoria Pública, quando ingressou na sala uma senhora muito simples, com vestes desgastadas, com aparência de 35 anos, e com um bebê no colo, vestido de forma humilde e com roupas que já não lhe cabiam. Chamava-se Camila, disse-me que a Assistente Social lhe encaminhara para a Defensoria Pública para que fossem providenciados os seus documentos e os de seu bebê. Logo pensei que este atendimento seria um caso típico de registro extemporâneo, que é muito comum nesta região. Todavia, quando Camila começou a relatar sua saga, percebi que seria, sim, o retrato de muitos brasileiros que não conhecem suas origens e não sabem precisar nem o dia em que nasceram. Camila disse ter nascido no Maranhão e que tinha diversos irmãos, relatando que o seu pai registrou todos os filhos na mesma época, naquele Estado. Quando questionada sobre a data de seu nascimento, ela não soube precisar dia, mês ou ano; não sabia, portanto, a sua real idade! Contou-me que, após alguns anos, a família mudou-se para Marabá, no Pará. Que havia perdido o contato com sua mãe há muitos anos, desde que veio para o Tocantins, bem como com os demais familiares. Questionei Camila sobre os seus documentos e ela disse que havia perdido na mudança para o Tocantins, bem como a Xerox da Certidão de Nascimento e o Título de Eleitor. Perguntei como se chamava o bebê de oito meses que ela carregava nos braços. Confesso que nunca em minha vida fiquei tão surpresa quanto no momento em que Camila disse que aquela criança ainda não tinha nome, porque este só vem com o documento, a Certidão de Nascimento! Perguntei como ela chamava a criança, e me respondeu com toda a simplicidade que era apenas de neném. Naquele momento, eu expliquei de modo didático a importância do nome para aquela criança, e que não tinha problema se ainda não haviam registrado o bebê por ausência de documentos da mãe. Era necessário que aquela criança saísse da Defensoria com um nome. Listei alguns, tentando ajudar na escolha. Camila e o companheiro gostaram de Adriano, mostrei-lhes o significado e eles aprovaram. Naquele momento, olhei para o bebê e disse que seu nome era Adriano; ele sorriu com uma expressão que nunca esquecerei em minha vida. Peguei o Cartão de Vacina da criança, escrevi “Adriano”, acrescentei os patronímicos materno e paterno e entreguei aos pais. Camila e o marido saíram da Defensoria Pública diferentes, pois estavam com o filho “Adriano”, e com a certeza de que mãe e filho obteriam seus documentos e passariam a existir de fato e de direito para a sociedade e para o Estado. A situação vivenciada me comoveu, porque jamais imaginei me deparar com um bebê de oito meses que ainda não tinha nome. Ora, ainda não tenho filhos, mas desde muito cedo sonho com os seus nomes. Não pensar em um nome para um filho é não ter perspectiva de futuro, não esperar nada do dia de amanhã, é simplesmente não sonhar. Camila não tem acesso a vários direitos porque não tem documentos e não sabe ao certo onde os tirou. A preocupação com o nome de seu filho torna-se inócua no meio de tanta dificuldade vivida. Adriano não existe para o Estado, a não ser pelo Cartão de Vacina que não apresentava nome algum. E se a sociedade não se preocupar com Adriano, ele também não sonhará com filhos ou seus nomes, pois certamente seus problemas e expectativas serão de outra ordem. Verifiquei que a expressão mais significativa do direito à personalidade, ou seja, ao nome, é negada ao Adriano e a outras tantas pessoas pela ausência do Estado na sociedade, no sertão brasileiro. E assim, há um sem número de pessoas invisíveis que não possuem o mais básico dos direitos, qual seja o direito ao nome. A Defensoria Pública do Tocantins, com suas ações, tem combatido de forma veemente esta realidade do tocantinense, que é não ser cidadão de fato, sem registro de nascimento.

 

Artigo publicado no Jornal do Tocantins desta quinta-feira, 10, na Coluna Opinião.

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