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O Dom de ser Mãe

Publicado em 24/06/2013 10:20
Autor(a): Autor não informado
Defensora Franciana Di Fátima Cardoso - Foto: Ascom

 

Num desses dias de trabalho, na lida diária de um Defensor Público, vivi uma experiência que revolveu diversos conceitos elementares do ser humano. Ali, sentada numa das desgastadas cadeiras da Defensoria, diante de meus olhos, com rosto sofrido, marcado pelas rugas, aos 87 anos de idade, uma senhora que se intitula mãe, acompanhada pela Conselheira Tutelar, em tom claro e repleto de lucidez me disse: “eu vim entregar meu filho, não quero mais ele!”. E disse com a voz firme, decidida, com a certeza de quem sabe exatamente o que está fazendo, mas com uma certa dor no coração, que talvez se pudesse chamar de  decepção.

 

Naquele momento todos os sentimentos de repulsa, asco e desprezo tomaram conta de minha alma. Como pode uma mãe entregar um filho? Foi preciso respirar fundo, e num gesto de alteridade (altruísmo), tentar compreender o que se passava. Foi preciso buscar forças, sabe-se lá de onde, para entender aquela Senhora, em cujo rosto se observava a sofrida existência e o maltrato do tempo, e averiguar qual a real possibilidade de um deslinde mais justo para aquela situação. Passei então a ouvir. Aquela senhora se dizia mãe de um adolescente de 14 anos. Explicou que nunca pariu um filho, mas criou vários, como se filhos fossem, e que o último, que chamou de João, lhe foi trazido ainda bebê por seu finado marido e entregue em seus braços para que pudesse, como mãe, criá-lo. Reconheceu que naquela época, já idosa, seria uma tarefa difícil, mas que faria, posto que já criara tantos outros, aquele seria, apenas mais um. Retomou então a jornada de criar mais um filho adotivo trazido recém nascido pelos braços de seu marido. João foi crescendo, reconhecendo naqueles rostos enrugados as figuras de pai e mãe. Contudo, o sopro da vida findou-se para àquele homem que o trouxera nos braços e tentou lhe dar um lar. Num dever de honra, disse-me aquela Senhora, com olhar triste e sombrio: “tentei continuar a empreitada de criar João como quisera meu marido”. Para tanto moveu ainda no início da década de 2000 uma ação de adoção, requerendo ao Juiz da Vara de Família que desse àquele menino a condição de filho seu. O feito tardou e como o Estado não lhe deu, até então, a desejada prestação jurisdicional e o então menino, hoje adentrando na adolescência, ela deseja desistir, entregar, abandonar aquela criança que ora queria adotar. Pois hoje, ela está uma velha e cansada senhora. Não quer mais ser mais mãe.

 

É sombrio o cenário. Percebe-se na fala da Senhora mãe, que talvez nem a condição de madrasta dos contos de fada lhe coubesse, entende que fez por João o que seu finado marido queria que fizesse, mas não o que o coração de uma mãe desejasse. E por isso não pode ser culpada. Aliás, culpa é conceito para o Direito Penal e para a expiação de pecado. Mas não pode ser o sentimento daquela senhora e porque não dizer guerreira. Ela fez o que pode e o que as convenções sociais lhe exigiam, afinal, tinha que atender aos desejos de seu finado marido. Era a submissão semeada num tempo em que as mulheres não tinham escolhas, simplesmente obedeciam.

 

Agora, cansada pelo fardo da vida, sem entender direito a relação afetiva que nutriu no coração de um menino adolescente que só no rosto daquela ‘velha’ Senhora é capaz de reconhecer a figura materna, desiste. Como se assim, de repente, pudesse eliminar do coração de João o afeto que por ela nutre, e fazer nascer sentimento filial por aqueles que lhe deram a carga genética, que são pessoas estranhas com quem jamais conviveu. E, pelas mãos do Conselho Tutelar esses genitores são chamados a criar João, já aos 14 anos de idade, que na simplicidade de quem não pode compreender a profundeza dessa relação dizem, sem muito rodeio, que não podem recebê-lo, ou porque não há condições de inclusão familiar ou porque falta toda forma de estrutura necessária. Afinal, João é portador de necessidades especiais por decorrência de um acidente e exige muitos cuidados. João não faz parte daquele grupo, nunca fez.

 

Enfim, João é um rejeitado! Porque sua idosa mãe já não sabe como lidar com suas traquinagens de adolescente e não tem mais força para educar e corrigir. Pois ela teme, por ter dentro de casa um adolescente infrator e com suas forças já debilitadas pelo tempo, não conseguir enfrentar tal situação. Daí vislumbra a fácil e rápida saída de entregá-lo e diz com a voz firme e decidida: "Vou entregá-lo! Não importa onde, no Conselho Tutelar, na Defensoria Pública, no Ministério Público, no Juiz” e sentencia aos prantos: “Se ninguém pegar esse menino – que já não chama mais de filho – deixarei minha casa e irei viver noutro lugar, bem longe daqui, mas com ele não vivo mais, fiz o que pude, não quero morrer!” E nesse contexto, tem João uma genitora, um genitor e uma mãe sócio-afetiva, de onde extraiu, nesses 14 anos, a posse do estado de filho e ao mesmo tempo não tem ninguém.

 

Está João abandonado afetivamente, no auge de sua adolescência, propenso, a todo instante, experimentar todos os desvirtuamentos da vida, inclusive a infração penal. O que ficamos a imaginar é que a Justiça não tem a solução para o caso, não poderá fazer germinar nos corações o amor, o afeto, o respeito pelo outro. Impotente, a Justiça verá, mais um adolescente, relegado à marginalização do amor, do afeto, da compreensão. Atirado à marginalização social, talvez se veja incluído em algum programa de assistência para adolescentes abandonados.

 

Mas uma coisa é certa: se um dia João vier a compor a lista daqueles que violam as convenções sociais e os bens da vida de maior relevância afrontando o Código Penal, não terá a Justiça dó e nem piedade. João poderá ser condenado a viver numa uma cela fria de uma unidade prisional como se lá, naquele canto fétido, pudesse reparar toda a sua história de desamor e recompensar a sociedade por eventuais prejuízos que venha lhe causar.

 

Não dá pra ver histórias como esta e não pensar naqueles milhares de homens e mulheres que compõem a população carcerária desse Brasil. Muitos deles, em algum lugar, perderam os laços familiares, ou sequer os tiveram. Outros tantos, apesar da desestrutura familiar, ainda contam com a mãe, ainda que de longe, em todos os momentos de sua vida, elevando uma prece a Deus para que proteja seu filho. Mas, que em tal situação, pode tão somente visitá-lo uma vez por semana, em alguma unidade prisional desse Brasil, aos prantos e sob o constrangimento das revisas íntimas, vendo nele o melhor homem do mundo.

Esse é o conceito de mãe que consigo conceber. Aquela, que mesmo diante do calvário, na mais profunda dor, não é capaz de deixar de olhar para seu filho e de amá-lo incondicionalmente, como ser, como homem. E a mãe, nesse caso, pode ser biológica, afetiva ou adotiva. Não importa! O amor não faz essas separações. Para o amor, mãe é só uma. É aquela descrita com belíssima riqueza poética de Giuseppe Ghiaroni, em seus versos nominados “Dia das Mães”, que transcrevo, com os olhos em lágrimas, pensando no João, que possivelmente não encontrará, como nunca encontrou, essa figura única, chamada MÃE.

 

DIA DAS MÃES

“Mãe! Eu volto a te ver na antiga sala

onde uma noite eu te deixei sem fala

dizendo adeus como quem vai morrer.

E me viste sumir pela neblina,

porque a sina das mães é esta sina:

amar, cuidar, criar, depois... perder.

 

Perder o filho é como achar a morte.

Perder o filho quando, grande e forte,

já podia ampará-la e compensá-la.

sorrindo, o rouba; e a velha mãe aflita

ainda se volta para abençoá-la.

 

Assim parti, e nos abençoaste.

Fui esquecer o bem que me ensinaste,

fui para o mundo me deseducar.

E tu ficaste num silêncio frio,

olhando o leito que deixei vazio,

cantando uma cantiga de ninar.

 

Hoje volto coberto de poeira

e te encontro quietinha na cadeira,

a cabeça pendia sobre o peito.

Quero beijar-te a fronte, e não me atrevo.

Quero acordar-te, mas não sei se devo,

não sinto que me caiba esse direito.

 

O direito de dar-te este desgosto,

de te mostrar nas rugas do meu rosto

toda a miséria que me aconteceu.

E quando vires a expressão horrível

da minha máscara irreconhecível,

minha voz rouca a murmurar: “Sou eu!”.

 

Eu bebi na taberna dos cretinos,

eu brandi o punhal dos assassinos,

eu andei pelo braço dos canalhas.

Eu fui jogral em todas as comédias,

eu fui vilão em todas as tragédias,

eu fui covarde em todas as batalhas.

 

Eu te esqueci: as mães são esquecidas.

Vivi a vida, vivi muitas vidas.

e só agora, quando chego ao fim,

traído pela última esperança,

e só agora quando a dor me alcança

lembro quem nunca se esqueceu de mim.

 

Não! Eu devo voltar, ser esquecido.

Mas que foi? De repente ouço um ruído;

a cadeira rangeu; é tarde agora!

Minha mãe se levanta abrindo os braços

e, me envolvendo num milhão de abraços,

rendendo graças, diz: “Meu filho!”, e chora.

 

E chora e treme como fala e ri,

e parece que Deus entrou aqui,

em vez de o último dos condenados.

E o seu pranto rolando em minha face

quase é como se o céu me perdoasse,

me limpasse de todos os pecados.

 

Mãe! Nos teus braços eu me transfiguro.

Lembro que fui criança, que fui puro.

Sim, tenho mãe! E esta ventura é tanta

que eu compreendo o que significa:

o filho é pobre, mas a mãe é rica!

O filho é homem, mas a mãe é santa!

 

Santa que eu fiz envelhecer sofrendo,

mas que me beija como agradecendo

toda a dor que por mim lhe foi causada.

Dos mundos onde andei nada te trouxe,

mas tu me olhas num olhar tão doce

que, nada tendo, não te falta nada.

 

Dia das Mães! É o dia da bondade

maior que todo mal da humanidade

purificada num amor fecundo.

Por mais que o homem seja um ser mesquinho,

enquanto a Mãe cantar junto a um bercinho

cantará a esperança para o mundo!

 

Autora: Franciana Di Fátima Cardoso- Defensora Pública

 

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